MAIS UM ENSAIO, copinado um texto de Beato Nuno, a ver se dá e a ver o que podemos escrever.Sábado, 16 de Junho de 2007
"MANHÃ SUBMERSA" versão “LIGHT” - I
Às seis e meia da manhã ecoavam já pela vasta camarata as estridentes palmas do prefeito que pouco a pouco iam trazendo os trinta e tal alunos, das asas de Morfeu para a dura realidade de mais um dia de oração, de trabalho e de algum recreio. Alguns, ainda estremunhados, tentavam permanecer mais um minuto, uns segundos que fossem no aconchego dos lençóis e dos cobertores, mas em vão. A figura negra e vigilante do prefeito agigantava-se e logo ali se especava, como que por magia, disposto a levantar as mantas. Não havia nada a fazer, não valia a pena lutar. A ordem era para levantar, lavar e perfilar. Já a oração da manhã, a meditação e a missa os esperava, todos os dias e à mesma hora, sem falha.
Com o rolar dos dias, das semanas e dos meses, a rotina ia-se apossando de todos e de cada um. Não havia como, nem por onde, nem para onde escapar daquela engrenagem opressora. Depois de “fazer as camas”, o rebanho lá seguia, em fila silenciosa, para o “pasto matinal”. Os criados dos pastores já o aguardavam à hora certa, no local certo. E como sabia bem aquele “café” com leite matinal e o saboroso pão de fabrico próprio! O nosso padeiro merecia um memorial! Mas o aconchego que se sentia no estômago e que se ia espalhando pelo corpo, era tão fugaz…!
Já a “cabra” afadigada chamava para a primeira aula. Maquinalmente cada um se dirigia para a porta da sua sala de aula, onde aguardava, em silêncio, a chegada do professor. Ia iniciar-se mais um longo e intenso dia de trabalho ora na sala de aula ora no silêncio do salão de estudo sob o olhar atento e vigilante do respectivo prefeito. Aquele regime de internato, com horários tão rígidos, com uma disciplina que obrigava ao silêncio nas aulas, no salão de estudo, nas camaratas, nas filas, a caminho e no regresso da Capela ou do refeitório, quantas vezes durante as próprias refeições, obrigava cada aluno a fechar-se em si mesmo e a procurar formas de “evasão”. Não bastavam os longos passeios ao Domingo à tarde, pelas ruas da cidade, pela praia soalheira e ventosa, pela Serra da Boa Viagem. É certo que estes funcionavam como uma espécie de válvula de escape e ajudavam a retemperar o corpo e o espírito, mas eram insuficientes para aguentar mais uma semana de internato. Como diz o poema
Não há machado que corte a raiz ao pensamento (…)Porque é livre como o ventoPorque é livre…e, por isso, a imaginação juvenil inventava novas formas de fuga daquele espaço tão igual, tão restritivo e tão rotineiro no volver circular dos dias. E o pensamento voava sem restrições e sem medos para bem longe: para a casa dos pais, para o lar e o aconchego que ele representava, para aquele primeiro amor inocente e feliz que ficara lá na terra, quer fosse a priminha querida, quer aquela menina da escola ou da catequese com quem cruzara um afectuoso olhar.
Outras vezes o espírito inventivo conduzia a utopias e paradigmas edénicos. “Pão, Amor e uma Cabana”: eis o máximo que a imaginação podia oferecer. E a verdade é que a utopia foi tomando forma e lugar certo e estável. Aos poucos, quase sem se dar por isso, lá foi nascendo a «cabana» meio escondida entre os frondosos loureiros. Tal como os exaustos marinheiros, no canto IX d´
Os Lusíadas, receberam a sua recompensa, assim também o engenhoso construtor acabou por colher os seus louros. Subrepticiamente, do outro lado da rua, lá vem surgindo, coleante, o apetecível pomo.
Numa idade em que se estava a desabrochar para a puberdade e para adolescência, em que todos os sentidos estão alerta, era inevitável que, neste regime de internato, as conversas interditas e secretas versassem sobre as chamadas “coisas feias”. Mas na aprendizagem e no debate destes temas, já de si tão controversos neste contexto epocal e espacial, em que cada um procurava dar a sua achega (até para não ser considerado um mentecapto ou, quiçá, menos viril), havia sempre um que pontificava. Ele assumia-se como mentor, como responsável pela iniciação de muitos neófitos. Mas – há sempre um “mas” –, aparecia sempre nestas “sociedades secretas” um delator, um bufo que, depois de ter dito também as suas graçolas, ia enfiar tudo no “sim-senhor” do prefeito. Era de imediato aberto um processo de averiguações, chamados os membros envolvidos e, num processo sumário, lavrado o auto de expulsão. «Expulsão», palavra terrível com implicações directas e irrevogáveis, já antecipadas, na condenação no Juízo Final e uma espécie de maldição que iria acompanhar o condenado por onde quer que ele andasse: na sua família, na sua terra natal, no prosseguimento de estudos, no futuro posto de trabalho. Mais valia ser “provisoriamente fuzilado”. O labéu iria persegui-lo para além da Eternidade, por todos os séculos dos séculos.
Em terra de pescadores já se sabia que depois da tempestade vinha a bonança. E, depois daquela purga, a vida retomava a normalidade e a rotina de sempre. É que, de facto, a Figueira, do Fundão, tinha apenas o
F inicial, e Coimbra não era a Guarda (esta tradicionalmente tem três
FFF – feia, fria e farta) nem a Braga daqueles tempos. A Figueira sempre foi a “Praia da Claridade”. Rejeitava os tons escuros que revestiam os rapazinhos de onze, doze anos da Braga de então que desfilavam dois a dois pelas ruas da cidade, em fila indiana, escondendo sob as abas negras do chapéu preto a palidez dos seus rostos. Mais parecia um bando de corvos avançando em linha, sob o comando do “corvo-chefe”. Na Figueira, pelo contrário, o vestuário era o normal de um jovem daquela época, revestido com os tons variegados que a Mãe Natureza nos oferece.
Apesar de tudo, a Figueira de então não passava de uma versão bastante
“light” da
Manhã Submersa.